CORPO

Grande! Disforme!

Corpo que com dificuldade olho no espelho, evitando a imagem devolvida. Franjas de peles caídas. Estrias marcadas como sulcos numa pele deteriorada pelos sucessivos avanços e recuos.

Peso perdido, peso recuperado, corpo ioiô, tem vivido ao longo dos anos como montanha russa num carrossel tresloucado. Corpo que se quer templo do ser e que tão maltratado tem sido. Corpo que tudo aguenta (até agora), embora se ressinta quando o esforço é exagerado.

A relação com o corpo não tem sido a melhor. Interiormente culpo-o por não ficar bem naquelas roupas giras das lojas. Por não ter resistência e energia suficiente. Embora saiba que a única culpada sou eu. São muitos anos a lutar contra a vontade de comer “porcarias” (a grande perdição deste corpo, ou melhor, desta mente – sim, tudo está na mente, na força do “eu interior”). São muitos anos a entrar em provadores, onde os espelhos se expressam por todos os lados, e a visão do corpo se torna imperdoável.

Longos anos em que a baixa autoestima leva a melhor. Longos anos em que a desculpa de não gostar de desporto camufla a verdadeira razão de não o praticar – vergonha de não conseguir chegar onde os outros chegam, fazer o que os outros fazem, especialmente quando as aulas de Educação Física assim o exigiam. Exceção feita à natação, onde o corpo se liberta e se sente realizado.

Dois filhos. Duas gravidezes que atiraram o corpo para números nunca antes atingidos. Dois seres maravilhosos que deixaram pontuada de marcas uma barriga que lhes gerou a vida. Culpa de quem? Culpa de quem não fez o melhor pelo corpo, culpa de quem não o tratou como devia, como merecia.

Há muito que procuro resposta, que procuro conceber as razões pelas quais o corpo é agredido de forma inusitada. Umas vezes inconsciente, mas a maioria consistente da ação praticada e das consequências vindouras. “É só mais um pouco”, “é só mais este doce / chocolate / gulodice”. Expressões tantas e tantas vezes usadas até à exaustão. Não menos vezes do que a culpa e o arrependimento percorrem o corpo. Mas o mal feito, feito está e não há nada que o possa apagar.

Sucessivas dietas, com alguns resultados, é certo, mas logo a desistência, o abandono das conquistas efetuadas. A impaciência da idade, associada aos lentos efeitos, são o mote perfeito para retomar velhos hábitos. O não conseguir resistir. Estar ao pé de alguém a comer uma coisa fenomenal e não a poder comer acrescia a vontade. Aguçava o apetite. “O fruto proibido é o mais apetecido” e as dietas causam a sensação de “proibição”.

A última dieta de que tenho memória de ter tido bons resultados, decorreu de uma espécie de “birra”. Alguém muito próximo (próximo demais ao ponto de magoar incisivamente, provocar uma dor que incomoda) disse “ela nunca será capaz de perder peso”. Tomei isso como incentivo e fiz-me ao caminho. Infelizmente, a partida precoce da desafiadora deitou por terra os dezanove quilos perdidos, que nunca chegou a presenciar. A dor de a ter perdido refugiou-se toda na barriga.

O simples facto de olhar para quem consegue atingir resultados, magoa. Achar que para aquelas pessoas é fácil o que para mim é um martírio aniquila o ser. Pois, os resultados dão trabalho, a diferença é quando não estamos dispostos a percorrer os caminhos sinuosos do sucesso.

Ano 2020. Ano marcado por inúmeras incertezas. Ano marcado por um início de pandemia que atirou o corpo para casa e preocupações acrescidas para o espírito. Mas também o ano em que o corpo (e a mente) param, olham para si (como há muito já o deviam ter feito – sem ressentimentos). Ano em que vinte e uma sessões (com o apoio de uma coach em desenvolvimento pessoal) ajudam a desbloquear a mente, sobretudo a descobri-la, conhecê-la e conhecer-me.

Se hoje o corpo está onde quero? Como pretendo? Não, longe disso. Mas hoje aprendi a conhecê-lo, amá-lo e respeitá-lo. Perceber que tal como não se engorda tudo num dia (é fruto de anos e anos de excessos, sobretudo de desrespeito para com o corpo), também não se é possível emagrecer num ápice. Requer disciplina, rigor, vontade, empenho, ânimo e principalmente amor. O próprio.

Se hoje me permito prevaricar? Sim. Sem culpa. Sem ressentimento. Sem agonia. Sem mágoa. Agora percebo que a relação com a comida sempre foi mais emotiva do que racional. Comer para nutrir. Não comer para confortar. Escolher bons alimentos, verdadeiros. Compreender, distinguir a fome emocional da fome real. Perceber quando o corpo precisa de sustento ou apenas quer conforto, “miminho”.

Se hoje me vejo ao espelho sem medo? Tem dias. Uns melhores. Outros piores. Mas devagar, firme, na certeza de alcançar um propósito maior. O meu corpo. A minha saúde. A minha liberdade. A minha família.

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